[metasaudade]

Se saudade é abstrata
Palavra inexata,
Essa eu desconheço
Pois a saudade da qual padeço
Tem corpo, tem peso,
Tem gosto de sal.
Ora sintagma coeso,
Ora texto de chanchada nacional.
Conjunção dos sentidos, sobrenome
Que a todos sujeitos consome.
Saudade minha, exclusiva,
E ainda assim, plural.
E a tua saudade imprecisa
Mora em que tempo verbal?

[sóis, pássaros, gratidão]

Junho findando e o sol já não está mais em gêmeos. Há dias penso em avaliar minha nova volta completa ao redor do astro-rei e não há margem para reclamação.

Recebi em tom de alerta: é só mais um dia, todos os dias precisam ser comemorados. Discurso tão fácil, generalista e egoísta quanto o atual propagado "todas vidas importam". O que justificaria negar o que grita por atenção, requer luz, olhar e cuidado?

Não desejo reduzir ao comparar, mas tanto num caso quanto o outro, resguardadas as necessárias proporções, é violento todo tratamento que exclua o que é específico sob o discurso raso da inclusão indiscriminada e aleatória. Te ofereço tudo, não te permito nada.

Assim, em tempos de solidão não escolhida, movimentei-me como pude¹, chamei a atenção e as (boas) energias para mim e a resposta - como tenho sorte!- foi de novo e sempre a melhor: meu dia cheio de canções² e cantorias, flores, presentes e "presenças", amor, afeto, dedicação. Visíveis esforços para que eu não me sentisse só, nem triste. Eu nunca estou só e a tristeza só me atinge na medida da força que ela, sozinha, possui.

Os dias têm sido tão difíceis, duros e cruéis, mas minha alma vem escapando livre e grata. Viver continua sendo o meu maior bem e cuidar disso tem me dado fôlego. E viver é indivisível das pessoas que escolhi para o meu percurso e nem tenho medo de dizer que fiz as melhores escolhas. Viver assim, fica quase fácil.

Buscar entender um pouco de astrologia anda longe de querer subterfúgios para justificar um modo engessado de ser. É conhecer para romper. É saber que a tendência que não me agrada nem me satisfaz precisa ser demovida, suplantada, transcendida.

O dramático trânsito canceriano não vai apagar a luz que ilumina o que vejo, nem turvar a imagem que percebo em essência. Alienação? Não. Movimento crítico deliberado. Escolha pensada, para os íntimos.

Junho vai terminando sem fogueiras nem balões. E hoje um beija-flor invadiu minha sala, inquieto, asas ligeiras, surpreendente. Fez sua graça, me abençoou e continuou pelo mundo afora, livre. Seu lugar, seu estado.

Aqui dentro, coração quente, alma colorida. Fogueira e balões.

O sol que ouso escolher.


1 - A ideia foi da Ihvna Chacon, e eu ganhei um monte de música. Obrigada!
2 - Aqui tem uma lista linda, com essas músicas todas. 

[osvaldo]

São tempos que contrariam todas as previsões, suspendem planos, recriam necessidades e prioridades, recalculam atenções.

Há dias em que é difícil dimensionar o desejo, definir a querência. Do que você está precisando hoje? Abraços? Companhia? Liberdade? Pode ser tudo junto ou algo que o valha. Pode ser também algo novo e inusitado que surge na janela magicamente, feito presente sob a árvore de natal que tantas vezes li nos contos.

E lá estava: colorido, estrondoso, arredio e já saiu batendo asas por toda a casa até encontrar seu cantinho na varanda. Acho que no meu coração também.

Reverteu o eixo do dia. Os problemas se avolumavam, mas ele era um "mas", o entre vírgulas, o suspiro no meio de toda intempérie. Houve de tudo. Mas houve ele, sobretudo.

Durou o suficiente para que as outras coisas se reordenassem. E deixou o recado assinado sobre a impermanência, sobre o movimento da vida que não permite que as coisas fiquem cômodas aqui dentro.

Uma fresta de janela aberta, um vacilo na atenção e um outro ensinamento: assisti com os olhos invernosos o mergulho que ele deu na oportunidade. De corpo inteiro, sem aparentar nenhum medo e nem qualquer indício de que pudesse voltar.

Ele estava certo. Depois do impulso da coragem e do prazer do desejo realizado, eu também não voltaria.

A permanência não é instintiva. O ficar precisa conter vontade. Ninguém vai embora só por distração. E nada pode ser mais consciente que o voo de ida.


[reclusão]

Solidão nunca foi problema. Obrigação, sim. Quantas vezes já escolhi o isolamento social como modus vivendi e passei incontável tempo usufruindo plenamente da minha companhia, vendo brotar as flores do ócio decididamente bem cultivado e quando resolvi sair, olhar para as chaves sem lembrar da última vez em que eu havia as feito girar na fechadura. E até aí, problema nenhum.

Mas era meu o controle. Era eu quem acendia as luzes e desligava os alarmes. Aceitava um convite ou criava um evento. E no final, nada mais proveitoso que voltar pra casa com alguma febre que fosse.

Sendo assim, de ordem, é tudo frio, clausura e palidez. A vida parece querer obrigar que eu me limpe de toda a sujeira histórica da humanidade com água e sabão. 

Exaustão e pureza.

Não posso. Quis a conjunção astral que eu vivesse de contatos, de ideias, informações. Elas sobram, transbordam, sufocam, mas não são minhas. São fruto do que o exército recluso e desocupado produz, e que mãos nervosas, ávidas por fazerem parte e certas de que estão fazendo história replicam frenética, repetida e incansavelmente.

É a minha história que eu não escrevo. Não toco corpos, não troco olhares e de tudo o que se diz e se ouve, é noves-fora "cuidado".

O comportamento é adulto, obedece às regras. O sentimento é infantil, tem gosto de castigo injusto, por algo que eu não fiz.

Minha autonomia e independência adormecem empoeiradas sobre o altar que construí para, pedantemente, reverenciá-las. Aguardam cabisbaixas a mão desconhecida que lhes acenderá uma vela capaz de dar luz ao velho - e seguro - caminho da cegueira. 

Para o que os olhos não veem, não há de haver coração.

[spoiler]

Inventasse um outro erro
De cunho proposital
Algo novo, consciente
E outra vez seria igual:
Essa velha história da gente
Dramalhão de roteiro insistente
Preveria o próprio final.

[entre Rubel e a história de um casamento]

Vou perseguindo metas. Já me disseram não ser metas. Não quantifico, logo não posso medir, logo não tenho parâmetro e nem tão logo não poderei avaliar.

Mas eu sinto.

Duelo com a preguiça. Distraio o ócio, meu tão caro ócio. Cutuco a disponibilidade e uma porta entreabre.

Vez ou outra necessito de borracha. A falta de costume exige repensar, refazer. Quem sabe volto a me expor à tinta, cravo nos teclados e convido outros olhos.

Por enquanto eu sinto.
Na verdade, nem sempre.

Sob recomendações de "cuidado, gatilho!", entreguei-me à "História de um Casamento" numa noite de um domingo tedioso, frustrado dos desejos que tive para ele. Aquela sensação-prejuízo de tempo perdido e até de uma solidão espinhenta, persona non grata, diferente da eloquente companheira, sabedora de mim e que é o avesso de qualquer fantasma.

A verdade é que não senti nada.

Aquele amontoado de tempo e de vida perdida mais parecia um lugar-comum, cansativo e óbvio, da natureza de tudo o que é perecível e quase merecido.

O amor perece, fenece, falece. Tranquilo. Alguns poucos soluços, outros tantos lenços e lençóis. E fim.

A cabeça não corresponde.
O coração não responde.

E ainda assim o pensamento não para e o sangue percorre, irriga, oxigena e conduz ao que é necessário e inevitável: o caminho.

O preço das escolhas é alto, mas com o tempo se paga e a minha frieza aguarda até algum troco.

Talvez eu esteja diante de coisas mornas esperando que alguma febre me tome de súbito, me faça delirar e assim justificar alguns devaneios a que eu decida me permitir.

Permito-me - sem perder de vista a lista - a conhecer coisas novas. Rubel canta enquanto escrevo. Mas não passou da febre inicial provocada há algum tempo por "Quando Bate uma Saudade". Ilusão. A saudade ilude. Vive por gerações fincada ao seu lado fingindo-se companhia, tola e pueril, que arranca sorrisos sob a capa de parecer sempre boa, a despeito de tudo.

Venho esfriando deliberadamente para as saudades românticas. Para as lembranças, não. Anoto-as na mente como os bons filmes que já vi. O problema é que aqui e acolá a memória me trai e esqueço que já vi. E lá estou eu entre a sensação familiar e o incômodo de que posso estar perdendo tempo e vida com histórias requentadas.

Às vezes a curiosidade me conduz de novo até o fim. E tem sempre um fim. Isso é certo. Às vezes a sombra gélida me vence e paralisa. Não consigo interromper.

Até o fim.


(janeiro de 2020)

[a vida invisível]

Hoje eu tenho dificuldade em chorar. Não que as coisas não me emocionem, mas daí até transbordarem em lágrimas, seriam necessárias outras reações.

Na minha vida prática isso não é de um todo ruim. Muitas vezes pareci um arquétipo de filha da dona das águas, precipitando em cachoeira quase tudo o que desviava o curso óbvio do meu rio de emoções.

Não transbordar, no entanto, não significa a ausência de turbulência dessas águas. "A Vida Invisível", por exemplo, foi corredeira caudalosa dentro do meu corpo. Assim mesmo: físico.

Num enredo arrastado por décadas, fui mastigando o sempre amargo pedaço da vida que é a feminina. Não importa o papel: a mãe, a irmã, a amiga - é sempre a ela que estão reservadas as escolhas mais difíceis, as consequências mais duras, as mais penosas punições.

A eles sempre o lugar decisório, ameaçador, arbitrário e impune. Mesmo inseguro e exercendo o controle sob a égide da chantagem emocional, é sempre o macho virtuoso o responsável pela da família e qualquer movimento pela realização do sonho feminino, um escândalo.

Fútil Eurídice.
Maldita Guida.

Mulher de cais, determinada pela ânsia de amar e ser feliz, tornava-se indigna das indeléveis instituições: casamento, família, sociedade.

Duas almas, duas posturas, métodos diversos de perseguir um sonho fracassado: ser feliz.

E assim, de frente para mais de duas horas e algumas décadas de opressão, que certamente aguardaria a cada uma de nós do lado de fora daquela sala, o choro que não me subia aos olhos revirava convulsionante em cada milímetro do meu abdome, como em estado de atenção e alerta, dando o recado certeiro: acomodar-se não é permitido.

[do juízo]

Livrado o flagrante, pôde, enfim, postular-se diante da própria consciência para assumir o delito: sentira saudades. Cabisbaixa, de voz estremecida e contorcendo os dedos das duas mãos como se debulhasse um rosário, admitira o que em outros tempos se definiu por crime.

Sequer esperava o interrogatório: explicava resignadamente cada passo daquele calvário intempestivamente cometido.

Disse que acordara normalmente e lembra-se de ter sorrido diante do espelho enquanto escovava os dentes. Era domingo, o que permitiu um pouco mais de tempo entre as cobertas com o cheiro fresco de lavanda ao qual já se acostumou. Não havia planos e a lembrança veio de súbito. Aprendera desde pequena que as ferramentas que constroem o erro estão quase sempre à mão e cedeu às facilidades.

Em minutos estava entre fotografias e cartas amareladas, embebidas em um perfume antigo, que em nada parecia com a lavanda clara, aquele odor que ousa saudar o dia. E o cheiro não lhe entrava pelas narinas. Reconstituía-se amplo, aguçando outros sentidos, como que “tentando recompor, com tantos estilhaços dispersos, o espelho quebrado da memória”¹. Num instante estavam recolhidas as lembranças, enfileiradas de si, como se em postura militar, dessem satisfação da sua existência, ainda que envoltas em versos perdidos de uma canção que jazia no escuro porão do esquecimento.

Cada detalhe confesso conferia-lhe ares de frieza, mas nada mais eram que puro exorcismo. Precisava desse segundo contato, de ouvir de sua própria boca cada requinte do seu crime, pois era dali que sairia sua sentença.

Não houve sangue, nem qualquer outro vestígio do que fora cometido naquela manhã. Precisava dizer também, em hora da sua confissão juramentada, que não houve lágrimas, tampouco arrependimento. Também não manifestou nenhuma intenção de desculpas ou retratação.

Sabia que seria absolvida. As últimas frases já não sofriam o vacilo da voz e as mãos já repousavam calmas, espalmadas sobre os joelhos. Os olhos fitavam o reflexo do espelho, entendiam com clareza o recado daquele silêncio solícito e eram capazes de prever um novo sorriso.

Estava livre. Inclusive para recair. Na verdade, fez-se lei. Dali em diante estava permitido sentir falta, saudade e até amor, resguardadas as ressalvas que credenciam qualquer legislação que se preze: sem endereço, sem rosto, sem signo zodiacal. Era a saudade ganhando o sonho como sinonímia. Tudo subscrito pela consciência. E confirmado, pelas folhas de calendário que se sucederam.

¹ trecho do livro "Crônica de uma morte anunciada" - G.G.Márquez

[fecunda]

Meses e meses de gestação
Aumenta o peso, a pressa, a pressão
O corpo cansa
Cresce o vazio peito.
Fragilidade é defeito
E a vida parece querer explodir
Por cada poro há algo a sair.
Melhor que venha naturalmente
Ou cortando a carne, independe
É só a fala de quem não sente
E desconhece a força
Daquelas que o mundo repele:
Dandara, Carolina, Marielle

E então mais um grito de dor:
Todos a clamar o rebento
Bem melhor se nascido varão.
Mas antes que se consagre o louvor
É preciso estar claro, senhor!
Que contem outra história!
Sua falácia será em vão
Porque para vir ao mundo
Para ver a luz do dia
O poema não tem outra forma
Que não nascer
Da feminina poesia.

[nada de novo]

Não era um texto pra conter dor. Mas ela atravessa cada palavra. Não é porque a dureza do cotidiano forma uma carcaça pétrea sobre muitos dos corpos femininos que cada ato, cada gesto impregnado de machismo não venha a atingir feito afiada lâmina sobre a fina membrana que recobre a história que não é minha, é de cada uma, até das que não assim percebem.

O encantamento parece ser falso adorno. Pétalas e pétalas de desconstrução, de discurso, de conhecimento aparentemente profundo de uma imensa sorte de saberes dentre outras frágeis qualidades que, desfolhadas uma a uma revelam os velhos espinhos que tanto machucam, marcam, e que nunca deixaram de ali estar. Um veneno sutil que aguarda o momento de imobilizar. Gosto amargo que insiste em se provar necessário e curador.

Não devia, não podia causar dor posto que não há nada de tão novo assim. Mas é o que a natureza da existência parece causar. É o que a vivência parece querer generalizar.

Não há retrogradação planetária que justifique. Não há mau entendimento, nem ruído de comunicação. É a clara voz do machismo: alta, grave e em desafino que brada diante da primeira fala que se contrapõe, da pergunta astuta que encurrala.

Está acordado o monstro que dispara palavras em tom odioso de tal forma que quase se materializam em lanças diante de mim. Repetida e recorrentemente.

É como se fosse possível visualizar o brilho raivoso nos olhos do animal acuado cujo sangue sobe à cabeça inflando-lhe as veias e despindo cada uma das vestes que passam a deixar visível o esquálido corpo de aparência rota e desprezível.

Não restou muito além da roupa enxovalhada que cheira mal e distancia do corpo, das palavras e das mãos, cuja força fez esquecer o som bonito e sagrado que um dia tirou de seus velhos tambores.

Falo de velhos, centenários, milenares e não menos contemporâneos. Insistentes realejos que repetem a cantilena que nos acusa de loucura e histeria. Que nos culpam por ataques mensais desferidos pelo desequilíbrio hormonal e que a lei ousou proteger. Que banaliza a dor coletiva irmãmente dividida.

Todo o resto é piada.

E se não rio, é porque há um manancial que me mantém na margem que resiste. Que se ouso o mergulho, mesmo cansada, as braçadas conscientes não hão de me permitir afundar. Porque entre água, suor e lágrima, basta que eu me saiba nadar.

[metasaudade]

Se saudade é abstrata Palavra inexata, Essa eu desconheço Pois a saudade da qual padeço Tem corpo, tem peso, Tem gosto de sal. Ora sintagma ...